quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Primeiro capítulo: CÍTRICO


DEMÔNIO DISFARÇADO
You look like a angel, walk like angel... A música que tocava ao fundo era do Elvis, com certeza. Os olhos ardiam sob aquela luz forte, que estava voltada diretamente para seu rosto, e que o obrigou a apertá-los novamente com força. Tudo doía... os braços, as pernas, mas a boca latejava insuportavelmente e ele não conseguia fechá-la. Onde estaria? Nicolas gemeu involuntariamente. Tentou, mesmo tomado pela dor pungente, se lembrar do que havia acontecido...
            Ele e Lillith tinham saído para uma balada. Eram Portadores e Anarquistas. Costumavam caçar em festas góticas, onde fakes se reuniam. Eles se camuflavam entre as pessoas e deliciavam-se escolhendo suas vítimas. Faziam apostas que envolviam desde o tempo que levariam para encontrar a presa perfeita, até a quantidade delas que degustariam em uma só noite. Eventualmente até podiam desfrutar do último suspiro de alguma vítima, mas não podiam deixar rastros muito evidentes, o que comprometeria a realização dessas festas. Lillith... o que teria acontecido com ela? Ele havia encontrado uma garota que se oferecera ao sacrifício sem qualquer restrição, exibindo seu pescoço delgado, disposta a doar tudo o que ele quisesse. Então ele a levara para o corredor que dava acesso à sala de administração da casa. Afoita para ser devorada, ela se enroscara nele, mordera seu pescoço, seu lábio, enquanto gemia de excitação. Nicolas a empurrara contra a parede prendendo seus braços e a vira sorrir ansiosa. Já sentia o gosto do sangue dela quando algo foi espetado em seu pescoço. Seus músculos travaram quase que imediatamente e talvez ele tenha caído de joelhos, mas não tinha certeza. A última coisa que viu e ouviu foi a garota sorrindo satisfeita e uma voz de homem que disse: Bom trabalho...
            You look like a angel, walk like angel... a música continuava bastante alta ajudando o pulsar em sua boca aumentar num ritmo excruciante. Queria gritar e chamar alguém... tentou mexer os braços, mas estava preso, amarrado... but I got wise... You're the devil in disguise... oh yes you are...
            A luz foi diminuída até ficar pouco mais fraca do que uma lâmpada de 60 wats. Nicolas sentia que sua boca estava seca, mas uma gosma escorria pelas laterais de seus lábios e pelo pescoço. Abriu os olhos...
            Que lugar era aquele? Um consultório de dentista? Pensou sentindo o pânico crescer incontrolavelmente. Sua boca aberta estava presa por algo de metal, que machucava. Um som como de um gargarejar foi a única coisa que ele conseguiu fazer. A música continuava em seu refrão, mas agora o som estava mais baixo, You're the devil in disguise... oh yes you are... the devil in disguise... Então uma sombra passou pela luz e a figura de seu captor se revelou. Era um homem baixo, com um rosto estreito, cabelo liso cor de palha que caía pela testa grudado no suor do rosto, a barba estava por fazer, os lábios eram finos e compridos e uma grande cicatriz o cortava do queixo até o pescoço entrando pela gola da camisa xadrez.
            Nicolas quis gritar, mas seus sons eram sufocados pela gosma que tomava conta de sua boca. O homem o fitou com esbugalhados olhos escuros e sorriu ligeiramente. Ergueu uma peça de metal o suficiente para que Nicolas pudesse vê-la, era semelhante a um alicate... era um boticão! Seus olhos devem ter transmitido o horror do reconhecimento, pois o homem abriu ainda mais o sorriso enquanto enfiava o instrumento na boca de Nicolas...
            Todo o rosto do rapaz doía agora, como se seu crânio estivesse sendo arrancado pela boca. Lágrimas desceram de seus olhos, eram de dor e desespero. O homem então ergueu na outra mão, ou o que devia ser uma mão, pois pareciam dedos de metal, que seguravam uma pinça e nela havia algo... ele o colocou na direção dos olhos de Nicolas para que ele pudesse ver mais claramente... Um dente! Grande, longo, pontudo, com a raiz sangrando. Seu dente! Nicolas quis gritar, mas apenas um som gutural saiu e foi o suficiente para quase sufocá-lo despejando o líquido espesso pela sua garganta... seu sangue. O homem piscou e assentiu, então largou a pinça e, com um movimento aumentou a intensidade da luz novamente e enfiou a broca em movimento na gengiva de Nicolas... Elvis continuava cantando...

            Lilian correra até quase perder o fôlego. Sentira quando alguma coisa acontecera a Nicolas, pois uma dor violenta a atingira na base do crânio enquanto dançava na pista seduzindo, lançando seus aromas tentadores, atraindo para depois degustar o sabor cítrico que o sangue cheio de energia tinha para ela. Durante muito tempo tentara definir que sabor o fluído vital possuía e encontrara algo parecido com: laranja. Às vezes doce, às vezes azeda, mas sempre boa para a saúde. Seu companheiro havia deixado a pista na companhia de uma mulher e, pouco depois, ela tivera aquela terrível sensação. Saíra da casa noturna procurando por ele, farejando, apesar daquele não ser um dom que desenvolvera, mas o cheiro de Nicolas estava impregnado nela e encontrá-lo sempre tinha sido fácil. O som de seus passos, indisfarçáveis por causa da pesada bota de couro que usava, ecoou pela rua deserta àquela hora. Estava frio e ela apertou a capa em torno do corpo, enquanto seus cabelos escuros chicoteavam seu rosto. O som de passos que não eram os seus vieram detrás dela. Lilian virou o rosto rapidamente e viu dois homens que vinham apressados em sua direção. Usavam capas longas e chapéus. Caçadores. Tinha certeza. Tentou não se desesperar, embora soubesse que, se eles colocassem as mãos nela, estaria perdida. Soubera de ataques a Portadores nas últimas semanas, todos eles vítimas de violentas torturas. Com as mãos trêmulas pegou o celular e apertou um número da memória.
- Preciso de você agora. – ela disse ofegante.
- Onde você está? – a voz de seu Escravo soou nervosa. – Estou na porta da boate e não te vi sair.
- Eles estão me seguindo... – ela disse e sua voz tremeu.
            Rubens ligou a moto sentindo pânico se apoderar dele.
- Onde, Lilian? – ele gritou. Só ele a chamava pelo nome, pois seus companheiros anarquistas a chamavam de Lilith.
            Sua pergunta foi respondida com um grito abafado e o que parecia ser uma luta, mas que demorou apenas alguns segundos. Rubens gritou chamando por ela, mas então o telefone ficou mudo. Tentando não se desesperar, o Escravo de Lilian, imaginou que ela teria saído pelos fundos, por isso não a vira sair e traçou mentalmente o mapa de ruas ao redor. Dirigiu como um louco para a rua que ficava junto à saída lateral da casa noturna. Se alguma coisa acontecesse a ela, seria melhor morrer...
            Lilian era uma anarquista e desdenhava constantemente o sangue de seu Escravo, mas havia sempre aquele momento em que ela desejava um pouco da safra, como chamava o sangue dele. Rubens era forte, mas ficava doente quando ela não o procurava. Ele a seguia e estava sempre por perto para o caso dela precisar, mas no momento se sentia completamente inútil. Não conseguira encontrá-la e temia que algo de muito ruim estivesse acontecendo. Com as mãos suadas e trêmulas, ele começou a dirigir pelas ruas em torno da casa noturna a procura de algum sinal de sua Vampira.
            Lilian fora jogada no interior de um veículo e amarrada. Seu celular fora esmagado por um dos homens e ela sabia que estava perdida.
- Seu caçador manda lembranças. – um dos homens, com voz estranhamente rouca e fina disse antes de espetar alguma coisa em seu pescoço e ela sentir como se estivesse caindo num buraco escuro e muito, muito fundo...
- Vamos levá-la para o Geraldo, ele vai gostar da surpresa. – Régis falou para o motorista. Ficava feliz cada vez que conseguia colocar as mãos num vampiro.
            Os Caçadores organizados haviam conseguido eliminar várias ameaças nos últimos meses. Chamavam-se entre si de Justiceiros do Sangue e Régis era sua mão forte, o membro mais determinado da equipe. Era devastador, usava a crueldade com requinte inigualável e amava fazer Vampiros sofrerem e pagarem caro por sugarem a vida de pessoas inocentes. Despertara como Caçador há cinco anos e apenas recentemente encontrara e eliminara a Vampira a quem sua missão estava atrelada, mas, nesse período, toda sua ânsia por encontrar a jovem que deveria eliminar, ao mesmo tempo em que lhe dera a experiência necessária à função, também o fizera perder a família. A mulher o abandonara, levando consigo os dois filhos e não o deixou mais se aproximar, alegando que ele perdera a sanidade. Desde então, Régis se tornara o mais implacável e sanguinário dos caçadores. Sua missão era ajudar seus amigos a concretizarem a missão que tinha sido jogada sobre suas cabeças.
            Régis observou a jovem inerte ao seu lado. O vampiro que estava com ela fora levado por outro grupo um pouco antes. A caçadora do rapaz era uma mulher muito emotiva, por isso ele fora entregue às mãos hábeis de Elvis. Sua atenção se voltou para a jovem ao seu lado. Era bonita. Sua pele era pálida e suave. Os cabelos negros deviam ser pintados, assim como seu rosto estava bastante maquiado e ela usava longos cílios postiços. Puxou a capa que encobria parte do corpo esguio. Os seios alvos quase saltavam sobre o corselet preto pedindo para serem tocados. Era assim que ela atraía vítimas inocentes, além daquele perfume que o deixava atordoado. Um cheiro de fêmea que o açoitava.
            Henrique olhou pelo retrovisor ouvindo um rosnar baixo que veio do banco traseiro onde Régis estava com a Vampira que haviam caçado. Viu o caçador deslizar a mão por dentro do corselet da jovem e apertar um dos seios com força. Voltou os olhos para a estrada quando uma buzina o alertou de que ainda dirigia.
            O sangue de caçador de Régis pedia pela oportunidade de tomar aquele prêmio para si, embora soubesse que ela pertencia a seu amigo Geraldo. Correu a mão pela perna fria da vampira por baixo da saia preta e com um único movimento rasgou a peça íntima minúscula que ela usava.
            Henrique segurou a respiração quando, pelo espelho, viu Régis puxar a jovem inconsciente e deitá-la no banco. Era instruído a nunca questionar as ações de outro caçador e a não se apiedar de qualquer vampiro que fosse. O discurso que motivava os caçadores era de que os Vampiros matavam para atingir o prazer, enquanto os caçadores matavam pela necessidade de ter suas vidas de volta. Régis já eliminara sua Vampira, mas mesmo assim demonstrava imenso prazer em continuar caçando, matando e... Respirou fundo e voltou a se concentrar no caminho. Não cabia a ele julgar quem quer que fosse, estava ali para aprender e tentar encontrar a mulher responsável por ele ter despertado um dia sentindo um grande ímpeto assassino.
 Sem se preocupar com a presença do outro caçador e com o que ele poderia estar pensando, Régis, com a voracidade que seu sangue exigia, pegou para si parte do prêmio, impregnando com seus odores o corpo daquela figura demoníaca disfarçada de mulher tentadora... 

Nenhum comentário:

Postar um comentário